quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Não aguento mais....

(Foto retirada da internet)

19h00m
O dia passara a correr. Ali estava ele a uns meros trinta metros de sua casa. Lá dentro a sua mulher andava como sempre atarefada a arrumar a casa e a adiantar o jantar, esperando que ele chegasse. O seu filho mais velho, esse deveria estar no quarto, sentado à sua secretária às voltas com os trabalhos de matemática que o professor lhe havia mandado para casa. Ele no entanto ali continuava. Queria ir para casa. Queria poder fechar os olhos. Queria descansar. No entanto não podia pois as suas pernas teimavam em desobedecer à ordem de andar. Permaneciam estáticas, possuidoras de um peso descomunal.

19h15m
As suas pernas teimavam em não se aproximar de casa. Olhou para a sua esquerda e reparou que aquele cafézinho da esquina continuava aberto. Decidiu entrar. Precisava de se sentar, pois as suas pernas começavam a tremer. Precisava de descansar.

- Boa tarde! Em que posso ajudá-lo?

À sua frente estava a empregada do café. Uma mulher alta, morena e bem constituída. Tinha de cerca de 40 anos. Apresentava um ar cansado, talvez por estar a trabalhar desde as 8h da manhã.

- Hã!! Desculpe, estava distraído. Por favor queria um chá. Mas não quero nada muito forte. Pode ser um chá de tília.

Ao ficar novamente sozinho, sentado à mesa daquele café, embrenhou-se novamente nos seus pensamentos. O rosto daquela mulher simples não saía da sua cabeça, apesar de ela ter voltado para trás do balcão e de estar de costas para ele. Apesar do seu rosto cansado, não conseguia ter pena dela. Sentia, isso sim, inveja. Inveja de o seu rosto não estar também assim cansado. Quem ouvisse os seus pensamentos julgaria que ele estaria louco. Mas não, não estava louco. Não que isso não viesse um dia a acontecer se nada mudasse.

19h20m
- Aqui está o seu chá. Cuidado que está quente. Deseja mais alguma coisa?
- Obrigado. Não. Está bem assim.

Pegou devagar na chávena e bebeu um pouco de chá. Que raio de dia aquele. Que raio de semana aquela. Como de costume tinha saído de casa às 7h30m para ir trabalhar. Tomara o seu pequeno almoço de cereais, fizera a barba, vestira o seu fato e colocara uma gravata azul. Não saíu de casa sem antes passar pelo quarto do filho e lhe dar um beijo na cara enquanto dormia profundamente. Passara depois pela cozinha onde se despedira da sua mulher com um beijo, dizendo-lhe "Amo-te Princesa!".

Dez minutos mais tarde, estava sentado num café com o jornal aberto nas páginas de anúncios de emprego, à procura de algo que lhe desse garantias de poder vir a ser selecionado. Marcou cinco anúncios. Passou todo o dia a telefonar e a ir a entrevistas de emprego. NADA. Não conseguira arranjar emprego. Havia quinze dias que a sua rotina era esta. Havia quinze dias que tinha sido despedido, juntamente com outros 50 colegas. Havia quinze dias que vivia com aquele segredo. Havia quinze dias que, todos os dias de manhã fingia em casa que ia sair para o emprego. Não tinha tido coragem para dizer nada. Sabia que um dia tinha que dizer a verdade. Andava a reunir forças. Seria hoje?

20h00m 
O café estava quase a fechar. Levantou-se. Foi até ao balcão e pagou. "Boa noite" - despediu-se. Ao cruzar a porta do café reparou que aquela tarde cinzentona havia-se tornado numa noite chuvosa. Levantou as golas da gabardine e encaminhou-se para o meio da rua. A escassos metros da porta de sua casa voltou a parar. Uma vez mais as suas pernas recusavam-se a andar.

20h05m
Continuava parado. A sua roupa estava encharcada da chuva forte que teimava em cair. O seu cabelo encharcado estava. Sentiu que algo lhe escorria pela face, que não a chuva. Era algo quente, que lentamente escorria por baixo de toda aquela água. Algo que teimava em continuar a jorrar. Estava a chorar. Chorava convulsivamente. Sentia-se um fracassado, mas tinha a certeza que a sua mulher o compreenderia e que o apoiaria. Não aguentava era a ideia de que ao contar a verdade desiludisse o seu filho. Queria acima de tudo que este se orgulhasse dele. Que se orgulhasse do seu PAI. Aquele sentimento estava a dar cabo dele. Estava a matá-lo.

20h15m 
Por fim as suas pernas mexeram-se e dirigiu-se para casa. Ao entrar em casa, como de costume, deu um beijo na mulher e disse-lhe: "Amo-te, Princesa!" e dirigiu-se ao quarto do seu filho, decidido a contar a verdade.

Ao chegar junto da sua secretária, onde estava a resolver problemas de matemática e, ao sentir a sua presença, viu-o levantar a cabeça e olhar para ele:
- Boa noite, Pai!
- Boa noite, filho!
- Pai, estás todo encharcado. O que aconteceu?
- Não foi nada. Isto já seca. Fi...
- Pai, porque é que tens os olhos tão vermelhos? Estiveste a chorar?
- Não. Que disparate. Foi uma areia que me entrou para a vista com o vento, e estou farto de a esfregar, mas ela não sai. Como foi a escola?
- Correu bem. Tive um muito bom a matemática. Fui o único.
- Ainda bem filho.

Baixou-se e deu-lhe um beijo na testa. Lentamente, voltou costas e saiu do seu quarto. Decidiu continuar a fingir. Afinal ainda não tinha conseguido encontrar coragem para contar tudo.

Fica para outro dia.

Participação no tema de Setembro/2011 ("Fingimento") da Fábrica de Letras


3 comentários:

chica disse...

Que conto bem contado e tão real para tantos que não sabem escancarar a verdade. LINDO, em todas as etapas. abraços,chica

Fê blue bird disse...

Tão verdadeiro e emotivo, fiquei realmente sensibilizada porque sei que será a história de tanta gente.
Parabéns

Beijinhos

Briseis disse...

Lá está... O fingimento não pode ser verdadeiramente condenado, só com o argumento de não ser verdadeiro. Não quando é por amor que se finge.

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